O silêncio das ruas abandonadas era sempre enganoso. Eu sabia que, assim que a lua atingisse o ponto mais alto no céu, as vozes voltariam. Sempre voltavam, noite após noite, como uma sinfonia macabra que se recusava a ter seu último acorde.
As estrelas brilhavam com uma clareza impossível de se ver nos assentamentos dos sobreviventes. Sem as luzes artificiais que uma vez dominaram o mundo, o céu revelava todos os seus segredos para aqueles que ousavam olhar. Eu os conhecia bem — cada constelação, cada planeta errante. Minha avó me ensinou a ler o céu como um mapa, uma das muitas habilidades necessárias para sobreviver neste mundo despedaçado.
A Humanidade já foi diferente, pelo menos era isso que minha avó me dizia. Havia cidades vivas, grandes como montanhas, onde as pessoas viviam em paz e harmonia, um mundo sem guerras, dor e sofrimento. Suas histórias pareciam contos de fadas para mim — prédios que tocavam as nuvens, máquinas que voavam pelo céu, pessoas que conversavam através de pequenos aparelhos que cabiam na palma da mão. Um mundo de abundância, de conhecimento, de possibilidades infinitas.
Mas então veio a calamidade.
Primeiro foram as mortes súbitas, casos que não tinham explicação. Pessoas saudáveis simplesmente paravam de respirar, seus olhos fixos em algo que ninguém mais podia ver. Depois, os gritos começaram. Vozes ecoando no ápice da noite, enlouquecendo aqueles que ficavam para escutar. Vozes de almas que não conseguiam partir, presas entre dois mundos.
Minha avó me contou sobre o pânico que se seguiu. Como as pessoas fugiam das cidades, abandonando tudo o que conheciam. Como governos colapsaram e fronteiras se tornaram apenas linhas imaginárias em mapas esquecidos. Como a humanidade, outrora orgulhosa de sua civilização, regrediu a tribos assustadas, unidas pelo medo.
As grandes cidades foram deixadas para trás há mais de setenta anos, transformadas em sepulturas vivas. Não era apenas o medo da morte, mas o medo daquilo que vinha depois. Os gritos, as vozes, a insanidade. No começo, tentaram resistir, tentaram entender. Cientistas se isolaram em laboratórios, buscando freneticamente uma explicação. Soldados patrulhavam as ruas, como se pudessem combater com balas o que não podiam sequer ver. Religiosos clamavam por arrependimento, por salvação, por misericórdia divina.
Mas como se combate algo que não tem forma? Como se estuda o que desafia todas as leis conhecidas? No fim, eles fugiram, mas a loucura os tornaram insanos e cruéis. Os sobreviventes se dividiram: os que tentavam reconstruir algo parecido com uma sociedade nos assentamentos distantes, e os nômades, como minha avó, que vagavam pelas ruínas do velho mundo, coletando pedaços do passado.
O crepúsculo dava lugar à noite enquanto eu caminhava pelas ruínas da cidade, desviando dos destroços e das marcas de uma civilização esquecida. A vegetação reclamava o que um dia foi seu — trepadeiras subiam pelas paredes descascadas, árvores cresciam através de rachaduras no asfalto, flores silvestres desabrochavam entre os dedos esqueléticos de estátuas quebradas.
Meus passos ecoavam solitários entre os prédios ocos, e, mesmo acostumada, um arrepio percorreu minha espinha. O ar carregava um cheiro de poeira e algo intangível — memórias que não pertenciam a mim. Às vezes, quando o sol batia em determinados ângulos, eu quase podia vê-las: sombras de pessoas indo e vindo, vivendo suas vidas sem saber que tudo acabaria tão abruptamente.
Parei para descansar em um parque que havia descoberto anos atrás. Um banco de pedra resistira ao tempo, parcialmente coberto por musgo, mas ainda sólido o suficiente para suportar meu peso. Tirei de minha mochila um pedaço de pão duro e uma garrafa d'água. Enquanto comia, observei os contornos dos edifícios ao meu redor, silhuetas recortadas contra o céu noturno cada vez mais escuro.
Eu nunca soube como minha mãe era antes de morrer. Seu rosto, sua voz, seu cheiro — tudo perdido para mim antes mesmo que pudesse registrar. Tudo que sei veio da pequena carta que carregava comigo desde que me entendo por gente. Um pedaço amarelado de papel, dobrado e redobrado tantas vezes que as linhas de suas dobras eram tão profundas quanto as palavras escritas nele.
"Por favor, cuide dela. Seu nome é Hope."
Palavras escritas com uma caligrafia trêmula, como se tivesse sido a última coisa que fez. Como se cada letra exigisse um esforço monumental, uma luta contra a inevitabilidade da morte para deixar uma última mensagem, um último pedido. Um nome como uma maldição e uma bênção ao mesmo tempo — Hope, esperança. Um conceito tão raro nos dias de hoje quanto as luzes que um dia iluminaram estas cidades.
Foi minha avó quem me encontrou, uma nômade que vasculhava as cidades em busca de vestígios do passado. Ela dizia que eu estava nos braços frios de minha mãe, que sua expressão era serena, apesar da dor. Um bebê recém-nascido, ainda ligado ao cordão umbilical, aninhado contra o peito de uma mulher que havia dado tudo para trazê-lo ao mundo.
Gravidez de risco. Era assim que chamavam quando uma vida nascia condenando outra. Antes da calamidade, havia hospitais, médicos, equipamentos que poderiam ter salvado ambas. Mas naquele mundo já não havia espaço para tal luxo. Naquela época, ninguém arriscava ajudar alguém como ela. Era mais seguro deixá-la para trás, longe dos assentamentos, para que sua voz não se juntasse às demais quando a hora chegasse.
Minha avó me contou que hesitou. Seu instinto de sobrevivência dizia para deixar a criança também, para não assumir uma responsabilidade que poderia comprometer sua própria existência. Mas havia algo nos olhos da mulher morta, uma súplica silenciosa que atravessava a barreira da morte. E havia a carta, apertada em seus dedos rígidos, como se mesmo na morte ela se recusasse a soltar seu último pedido.
Então, em um mundo onde a compaixão havia se tornado um luxo perigoso, minha avó escolheu ser humana. Ela me pegou, me embrulhou em seu próprio casaco e me levou consigo, me nomeando conforme o desejo de minha mãe. Hope. Uma promessa feita a uma mulher que nunca conheceria.
A noite havia caído completamente agora. A lua, quase cheia, iluminava a cidade com uma luz prateada e fria. Era hora. Mesmo que quisesse, não poderia adiar mais.
Então, ouvi.
Primeiro, um sussurro. Um murmúrio distante que poderia ser facilmente confundido com o vento entre os escombros. Depois, os lamentos se ergueram como uma maré crescente. Gritos angustiados preenchiam as ruas vazias, vozes de quem não conseguia partir. Era sempre assim, sempre a mesma dor, a mesma sinfonia trágica. A "Ópera dos Mortos".
Cobri meus ouvidos instintivamente, mesmo sabendo que seria inútil. As vozes não podiam ser bloqueadas, não completamente. Elas penetravam na mente, ecoavam dentro do crânio, traziam imagens de suas mortes, de seus medos, de seus arrependimentos. Por isso tantos enlouqueceram no início. Por isso os sobreviventes evitavam as cidades antigas como se fossem pragas.
Mas eu tinha vindo para ouvir uma voz específica.
Me ajoelhei no local onde nasci. Era aqui que minha mãe morreu, sozinha, abandonada por uma sociedade que não podia se dar ao luxo de acolher os fracos. Todos os anos, no meu aniversário, eu voltava para ouvi-la. E lá estava ela. Sua voz não era um grito de desespero, como as outras. Era um sussurro gentil, um abraço feito de som.
"Eu continuo aqui, mãe," murmurei, lágrimas quentes descendo por minhas bochechas, contrastando com o frio da noite. "Viajei por tantas terras, ouvi tantas vozes, levei cada história comigo..."
Contar-lhe sobre meu ano tornou-se um ritual. Falei sobre os novos assentamentos que havia visitado, sobre as pessoas que conheci, sobre as histórias que coletei. Como minha avó me ensinara, eu era uma guardião de memórias agora, preservando o conhecimento de um mundo que se recusava a desaparecer completamente.
Ela ficou em silêncio.
Era sempre assim. Quando eu falava, ela escutava. Não havia respostas, apenas uma presença, uma atenção que eu podia sentir como um calor suave contra o frio cortante da noite.
Por isso eu voltava.
Porque, por algumas horas, eu podia fingir ter uma mãe que me ouvia, que se importava, que estava lá para mim. Uma ilusão, talvez, mas uma que eu precisava desesperadamente manter.
Mas naquela noite, algo mudou.
As vozes ao redor se intensificaram, tornando-se uma cacofonia insuportável. Elas nunca tinham gritado assim antes. Algo estava diferente. O vento soprou forte, levantando poeira e folhas mortas. Minhas mãos tremeram enquanto eu tentava me estabilizar, sentindo o mundo girar ao meu redor.
Sempre soube que as vozes eram assim. Que gritavam à noite, que enlouqueciam os que ouviam por tempo demais. Mas no começo, antes de tudo ruir, ninguém entendia. Médicos tentaram explicar como alucinações coletivas, como ataques psicológicos, como uma doença nova e terrível. Religiões buscaram respostas em textos antigos, falando sobre o fim dos tempos, sobre julgamentos divinos, sobre portais entre mundos. Houve teorias sobre radiação, sobre experimentos secretos, sobre armas de guerra psicológica.
No fim, tudo que restou foi o silêncio dos vivos fugindo e o lamento dos mortos ficando para trás.
A cacofonia atingiu um crescendo ensurdecedor, como se todas as almas perdidas da cidade gritassem em uníssono. Caí de joelhos, pressionando minhas mãos contra meus ouvidos com tanta força que senti dor. Meus olhos se fecharam firmemente, lágrimas escorrendo entre as pálpebras cerradas.
E então ouvi sua voz de novo, minha mãe. Não um sussurro, mas um chamado.
"Hope."
Meu coração parou por um instante.
Ela nunca havia dito meu nome.
Abri meus olhos, olhando freneticamente ao redor, procurando por... algo, qualquer coisa. Mas a cidade permanecia vazia, banhada pela luz da lua. E ainda assim, eu tinha certeza do que havia ouvido.
A cidade ficou em silêncio. Todas as outras vozes se calaram ao mesmo tempo, como uma orquestra que de repente perde seu maestro. O peso daquelas almas parecia ter sido arrancado do ar. Pela primeira vez em 16 anos, senti algo que não era apenas dor ou vazio.
Senti paz.
"Mãe?" sussurrei, minha voz quebrando.
A resposta veio, não como uma voz que meus ouvidos pudessem captar, mas como uma sensação que permeava todo o meu ser. Uma presença que me envolvia completamente, como um abraço que eu nunca havia experimentado.
E então, soube.
Ela estava comigo. Sempre esteve. Não presa em um local, condenada a repetir seu lamento noite após noite, mas observando, acompanhando, protegendo. Cada passo que dei, cada história que ouvi, cada memória que guardei — ela estava lá, uma presença silenciosa, uma guardiã invisível.
Talvez os nômades estivessem certos. Talvez as almas não estivessem presas por uma maldição, mas sim por histórias não contadas, por despedidas nunca ditas. Talvez fosse por isso que voltavam noite após noite, gritando para serem ouvidas, para serem lembradas.
Talvez minha mãe tenha esperado todos esses anos para ouvir minha história. Para saber que seu sacrifício não foi em vão. Que a vida pela qual ela deu a sua cresceu, aprendeu, sobreviveu. Que a Hope que ela nomeou realmente carregava um pouco de esperança em um mundo sem esperança.
As lágrimas agora fluíam livremente, não de tristeza ou medo, mas de uma emoção mais complexa, mais profunda. Uma mistura de dor e alívio, de perda e encontro, de fim e começo.
Fechei os olhos e sorri, segurando aquele momento dentro de mim. Gravando cada sensação, cada detalhe, para levar comigo para sempre.
"Eu te amo," sussurrei para o ar noturno, para a cidade silenciosa, para a presença que eu não podia ver, mas podia sentir com cada fibra do meu ser.
E então, com a brisa suave que passou por meus cabelos, quase como uma carícia gentil de dedos que nunca me tocaram, sua voz desapareceu.
Eu nunca mais a ouvi.
Mas eu sabia.
Ela, finalmente, havia partido.
Não porque estava presa e agora estava livre, mas porque sua missão havia sido cumprida. Porque ela tinha visto que eu estava bem, que eu estava forte, que eu estava viva. Que a Hope que ela nomeou havia se tornado exatamente o que ela esperava — uma luz em um mundo escuro, uma guardiã de memórias, uma ponte entre o que foi e o que poderia ser.
Na manhã seguinte, quando o sol nasceu sobre a cidade silenciosa, eu estava ainda lá, sentada no mesmo lugar onde nasci e onde minha mãe morreu. Meu rosto estava marcado por lágrimas secas, mas meu coração estava leve. Peguei minha mochila e a carta, traçando delicadamente as letras trêmulas com a ponta dos dedos.
Era hora de partir. Havia histórias para coletar, memórias para preservar, pessoas para conhecer. E agora, havia algo novo para contar a elas — sobre uma cidade onde, por uma noite, as vozes dos mortos silenciaram. Sobre uma mãe que esperou dezesseis anos para se despedir. Sobre uma esperança que nunca morreu completamente, mesmo no mundo mais desesperançado.
E enquanto eu caminhava para longe da cidade, pela primeira vez, não senti mais o peso da solidão. Porque agora eu sabia que nunca estive realmente sozinha.
E talvez, apenas talvez, isso fosse verdade para todos nós.