I
As estrelas cintilavam como pequenos fragmentos de gelo sobre o Reino de Rraghon quando Garth e Edrik atracaram seu pequeno barco no porto. Três dias de caça renderam uma rede cheia de trutas-prata, seis lebres e um cervo jovem. Garth, à mercê da idade avançada, sentia a chegada do inverno em seus ossos. Apenas mais um além dos outros 68 invernos que já vivera. O frio da noite penetrava em sua capa gasta. Garth sabia que essa seria a última caçada que participaria.
"Garth, Edrik!" falou alto um velho senhor que morava perto do porto, enquanto trazia dois cavalos brancos esbeltos. "Seus cavalos comeram o dobro do que da última vez que ficaram em meu curral," completou franzindo as sobrancelhas.
"Sebastian!" disse Garth enquanto tentava esconder o descontentamento por ver o velho ranzinza. "Não se preocupe, olha, te darei 5 trutas-prata como compensação." Completou torcendo para o homem pegar o saco de peixes e ir embora.
"Peixes, Garth?! De novo?! Estou cansado de peixes, olhe, estou até criando escamas," disse o velho enquanto mostrava as almofadas da mão nitidamente descascando. "Na próxima quero um cervo adulto, Garth! Um cervo adulto!!" completou enquanto virava as costas e voltava pelo caminho de onde veio.
"Foi uma boa caçada, pai," disse Edrik amarrando as peles e peixes restantes ao lombo dos cavalos. "5 peixes não farão falta." Seus dedos trabalhavam ágeis nas correias de couro.
Garth fez uma cara feia franzindo a testa, enquanto amarrava o cervo, "esse velho faz isso todo o ano," disse já cansado, mas Edrik percebeu que ele parecia se alegrar com o jeito ranzinza do velho Sebastian. "Lembro da vez que ele insistiu que era meu irmão perdido, para que eu o levasse junto para casa," continuou, deixando escapar um pequeno sorriso de diversão lembrando do acontecimento.
Edrik deu uma breve risada enquanto colocava seu arco nas costas e se preparava para montar no cavalo. "Pai..." disse ele quando percebeu uma coluna de fumaça no horizonte, "olhe, aquele não é o vulcão Korrath?" perguntou enquanto seus olhos brilhavam.
Garth estava terminando de ajustar os alforjes com anzóis e linhas de pesca herdados de seu pai. O couro estava rachado pelo uso, mas as ferramentas dentro permaneciam afiadas e prontas. "Sim meu filho, parece ser... o vulcão..." Falou em dúvida, pois aquela coluna de fumaça e a cor das chamas não eram características do vulcão que já vira entrar em erupção por várias vezes.
"Os anciões da vila me falaram que quando isso acontece, precede boa caça e colheitas abundantes," disse Edrik entusiasmado.
Garth assentiu, mas alguma coisa em sua mente dizia o contrário, "Vamos. Antes que sua esposa e suas filhas fiquem preocupadas, o vinho quente já deve estar esperando," completou enquanto montava em seu cavalo.
Seguiram a trilha por uma pequena estrada que cortava a floresta contornando as montanhas. A lua banhava em prata líquida o caminho, tornando desnecessárias as tochas.
Cavalgaram em silêncio por um tempo. Edrik estava perdido em seus pensamentos, enquanto Garth sentia a apreensão crescer em seu peito à medida que as montanhas, cumes e bosques iam saindo de seu campo de visão ao se aproximarem do vilarejo.
"Éstia tem chance de estudar com Lysara," disse Edrik finalmente, sua voz carregada de orgulho paterno. "Ela conhece todas as ervas apenas pelo toque e pelo cheiro. Logo antes de partimos, ela identificou dez plantas diferentes de olhos vendados."
"O sangue de Helena," respondeu Garth, lembrando como sua nora salvara tantas vidas durante a febre que varreu a região cinco anos antes. Helena trabalhara até a exaustão, preparando infusões e cataplasmas, quando até o curandeiro da cidade grande havia desistido. "Tua esposa sempre teve o dom da cura nas mãos."
Éstia tinha doze anos, com os olhos atentos da mãe e a determinação do pai. Lira, de oito anos, cantava como um pássaro desde que aprendera a falar, e a pequena Amara, com apenas quatro primaveras, já mostrava a curiosidade insaciável que caracterizava a família. Um bando barulhento e amoroso que Garth considerava tão seu quanto o filho que os trouxera ao mundo.
À medida que se aproximavam, a fumaça começava a ficar cada vez maior. "Isso não é o vulcão", sussurrou Garth com a voz falhando à medida que o medo aumentava. Seu estômago contraiu-se em um nó frio.
"Algo está errado," Edrik chicoteou seu cavalo, seu corpo inclinado para frente como se pudesse atravessar a distância pela força da vontade.
Foi quando eles escutaram, era um som ensurdecedor. Não um rugido animal ou trovão de tempestade. Era como a terra rasgando-se das profundezas, combinada com o assobio agudo do vento por frestas de madeira velha. Uma melodia composta pela própria morte, que fez os pelos da nuca de Garth eriçarem.
O som fez com que os cavalos enlouquecessem. O animal de Edrik se ergueu sobre os cascos traseiros, relinchando de terror, mas ele conseguiu controlar a montaria com força e palavras firmes. O cavalo de Garth, porém, rompeu as rédeas com um safanão violento e desapareceu floresta adentro, levando parte das provisões.
"Deixe ir," disse Garth, levantando-se com dificuldade do chão onde caíra. Sentiu uma dor no quadril, mas a ignorou.
O pequeno bosque sagrado, onde os habitantes faziam oferendas aos antigos deuses, bloqueava parcialmente a visão do vale. Mas o brilho além das árvores denunciava a tragédia à medida que avançavam. O vilarejo, seu lar, ardia na noite.
II
Abandonaram a trilha e desceram direto pela encosta, escorregando em pedras soltas, agarrando-se a arbustos para não cair. Os pulmões de Garth ardiam com o esforço, mas o medo por sua família era mais forte que a dor. Edrik corria à frente, saltando como um cervo perseguido.
O cheiro chegou antes que pudessem ver claramente: madeira e palha queimada, e outro odor que nenhum homem deveria ser capaz de reconhecer — carne humana carbonizada. Garth engasgou, mas continuou avançando contra a vontade de seu corpo velho.
Quando contornaram a última colina que bloqueava a visão completa do vale, Edrik congelou como se tivesse batido numa parede invisível. Seu corpo inteiro tremeu.
"Não." A palavra saiu como um gemido estrangulado. "Não... não... não... não..." as palavras começaram a falhar enquanto seu rosto ficava mais branco que a neve.
"Oh Céus..." exclamou Garth ao ver toda a vila reduzida a cinzas. Sua vila não existia mais. Onde antes havia casas simples de pedra e madeira, o templo com seu sino de bronze, o curral comunal para os animais — agora só restavam estruturas enegrecidas e fumegantes.
Corpos carbonizados pontilhavam o chão como bonecos quebrados e abandonados. O poço central, orgulho da vila, era agora apenas um anel de pedras rachadas pelo calor.
E no centro de toda aquela devastação, movendo-se com uma graça terrível, estava a criatura.
Escamas escarlates, densas como placas de metal, refletiam as chamas enquanto ela caminhava entre os destroços. Asas que usava para apoiar como se fossem patas dianteiras, parcialmente dobradas sobre um corpo longo e serpentino que terminava numa cauda com espinhos. Sua cabeça triangular, coroada por chifres negros que se projetavam para trás como lanças, movia-se de um lado para outro enquanto farejava o ar. Garras como adagas perfuravam o solo a cada passo.
"O que é aquilo?" A voz de Edrik era apenas um sussurro trêmulo.
"Isso é..." os olhos de Garth se arregalavam, suor gelado escorria pelo seu rosto. "Céus, isso é um demônio rubro..." completou a frase com palavras secas lembrando do nome que seus antepassados citavam nas histórias do antigo reino, quando ainda era governado por Rraghon.
"Pai..." Edrik apertava o arco com tanta força que os nós de seus dedos estavam brancos. "Minha família..." seus olhos percorriam cada canto coberto por cinzas buscando um sinal de vida com uma esperança falha que lutava para existir.
A criatura ergueu a cabeça abruptamente, como se tivesse captado um cheiro ou um som. Virou-se ligeiramente, e a luz das chamas revelou uma cicatriz profunda que cruzava seu rosto escamoso, descendo da testa até a mandíbula. Um de seus olhos era branco leitoso, cego.
"Ele é velho," murmurou Garth. "Ele é... Tem as mesmas cicatrizes... Ainda está vivo?!" sua voz ia sumindo à medida que as histórias passadas de geração em geração iam voltando às suas lembranças.
Um grito agudo cortou o ar noturno, um som que fez os dentes doerem. Duas novas silhuetas recortaram-se contra o céu fumacento, aproximando-se rapidamente, suas asas batendo violentamente.
"Mais..." Edrik não conseguiu terminar, sua garganta fechada pelo terror.
As criaturas menores mergulharam em direção à primeira, emitindo sons que pareciam quase palavras numa língua esquecida há milênios. Suas escamas também eram vermelhas, mas menos intensas, quase com manchas marrons em algumas partes.
A criatura maior virou-se para enfrentar os recém-chegados. Ergueu-se sobre patas traseiras poderosas, suas asas abrindo-se completamente, revelando uma envergadura que poderia cobrir metade da vila. Seu rugido fez a terra sob seus pés tremer como se o próprio mundo temesse sua fúria. E em um impulso impossível para o seu tamanho, levantou voo indo em direção aos invasores.
III
O céu noturno acima das ruínas do vilarejo se transformou em palco de um combate infernal. As três criaturas agora eram apenas silhuetas recortadas contra o céu estrelado e a fumaça negra que se erguia da vila destruída. Garth e Edrik observavam, paralisados pelo terror.
Um rugido ensurdecedor cortou o ar, tão potente que reverberou no peito dos dois homens como um segundo coração. Logo depois, um clarão vermelho-alaranjado iluminou as nuvens. Outro clarão respondeu, mais fraco. As três formas sinuosas moviam-se em velocidade impensável para criaturas daquele tamanho, suas sombras dançando contra a fumaça como um teatro de sombras macabro.
"Se as histórias forem verdadeiras, eles devem ter vindo do continente de pedra," disse Garth, enquanto sua mão procurava o ombro de seu filho buscando apoio. "Mas por qual motivo?"
As três criaturas duelavam nos céus, rugidos e jatos de chamas transformando a noite em verdadeiro inferno. De repente, um clarão mais intenso iluminou a cena por completo. Seguiu-se um grito agudo e agonizante, diferente de qualquer som terreno.
Um dos demônios menores caía, girando descontroladamente, seu corpo escarlate refletindo as chamas que escapavam de uma ferida terrível: um rasgo imenso que atravessava sua barriga até o peito. Enquanto despencava, chamas vazavam pela ferida como sangue incandescente.
O impacto contra o chão foi violento, levantando uma nuvem de cinzas e brasas das ruínas. O demônio caído ainda se contorceu por alguns momentos, suas asas batendo fracamente antes de ficar imóvel, as chamas que escapavam de seu peito diminuindo gradualmente até se extinguirem.
Logo depois, pôde-se ouvir o bater de asas da criatura maior, que dispersou as nuvens de fumaça, se aproximando para pousar novamente nas ruínas da pequena vila. Ela carregava a segunda besta em sua boca, que se fechou precisamente no crânio do invasor, matando-o instantaneamente.
O demônio maior pousou novamente no centro da vila destruída, as patas traseiras absorvendo o impacto enquanto as asas se fechavam parcialmente ao longo do corpo serpentino. Só então soltou o cadáver do demônio menor, deixando-o cair com um baque surdo entre as ruínas.
Um silêncio opressivo caiu sobre o vale. Apenas o crepitar das poucas chamas que ainda ardiam podia ser ouvido e a respiração daquela criatura enorme.
"Precisamos sair daqui," sussurrou Garth, puxando Edrik pelo braço. "Agora, antes que nos perceba."
Mas Edrik permanecia imóvel, seus olhos fixos na criatura abaixo que agora se aproximava do primeiro demônio caído, seu corpo serpentino movendo-se com a fluidez de água escura entre os escombros. Apoiado nas patas traseiras e nas juntas de suas asas, caminhava com uma graça terrível entre as ruínas.
O demônio começou a se alimentar primeiro do corpo do adversário que acabara de matar. Com suas mandíbulas poderosas, arrancava grandes pedaços de carne escamosa. Depois, moveu-se para o segundo cadáver, fazendo o mesmo.
"Filho," a voz de Garth falhou. "Não há nada que possamos fazer." Seu corpo tremia com a presença da criatura, tentando conter o próprio luto e o pânico.
"Helena... minhas filhas..." Edrik murmurou, sua voz quebrando-se.
Com horror crescente, Garth viu o demônio voltar sua atenção para o que restava dos habitantes da vila. A criatura devorava tudo.
"Nem toda a vila unida poderia enfrentar essa criatura," disse Garth, as palavras doíam à medida que eram ditas, "nossa família... se foi..." completou enquanto lágrimas escorriam pelo seu rosto enrugado.
IV
A criatura finalmente se ergueu, aparentemente saciada após seu festim horrendo. Sob o luar que agora penetrava por entre a fumaça que se dissipava, Garth pôde ver melhor as cicatrizes que marcavam o corpo da criatura: o sulco profundo que cruzava seu rosto, deixando um olho branco e cego, e outra, ainda mais impressionante, que atravessava seu peito escamoso como um raio congelado no tempo.
Emitindo um rugido que ficaria gravado na mente dos caçadores até o fim de suas vidas, fez as próprias cinzas ao redor vibrarem. Era quase musical em sua terrível beleza — o canto de um ser que não deveria existir no mundo dos homens.
Então, com um único e poderoso impulso de suas patas traseiras, a criatura alçou voo. O deslocamento de ar criado por suas asas imensas varreu o que restava da vila como uma tempestade, espalhando brasas e cinzas em espirais luminosas. Subiu verticalmente, seu corpo escarlate como uma ferida contra o céu noturno, até quase desaparecer entre as nuvens.
Depois, virou para o norte — em direção às terras inóspitas além das montanhas, o Continente de Pedra de onde viera.
V
Um brilho metálico entre as ruínas, que vinha do mesmo local onde sua casa costumava ficar, captou o olhar de Edrik. Ele se desvencilhou do pai com um movimento brusco e desceu alguns passos pela encosta, seus olhos fixos naquele ponto luminoso entre as cinzas e madeira carbonizada.
Era o pequeno broche de falcão em prata que Edrik havia esculpido para Éstia no inverno passado, trabalhando durante semanas nas noites frias, moldando o metal com paciência e amor. A peça, milagrosamente intacta entre tanta destruição, reluzia sob a luz da lua como uma cruel lembrança de tudo que haviam perdido.
Edrik caiu de joelhos, o broche tremendo entre seus dedos sujos de cinza. Não chorou. Não gritou. Não fez os sons animalescos de dor que Garth esperava. Em vez disso, seus olhos, sempre vivos e curiosos desde a infância, esvaziaram-se completamente.
"Éstia," murmurou Edrik, acariciando o broche polido como se fosse o rosto da filha. Seus dedos deixavam marcas negras de cinza na prata. "Lira... Amara... Helena."
Os nomes de suas filhas e esposa saíram como uma oração final, um adeus que ninguém além do pai ouvia. Garth colocou a mão no ombro do filho e apertou, sentindo os músculos tensos sob o tecido rasgado. Não havia palavras que pudessem atravessar aquele abismo de dor.
O rugido final da criatura ecoou pelo vale quase como um aviso, reverberando entre as colinas e penetrando até os ossos dos dois únicos sobreviventes.